A Maçaneta
- Olha doutor, eu sei que estou aqui tomando seu tempo e o senhor deve estar cansado - "e como", o doutor sentiu vontade de responder - mas eu ainda nem cheguei na parte principal da história.
O doutor suspirou. O paciente havia, há uma ou duas eternidades atrás, começado a falar sobre sua vida. O doutor se perdeu mais ou menos no final da infância e começo da adolescência, quando descobriu que, de repente, os clips de papel da mesa pareciam bem mais interessantes do que ouvir aquele sujeito lamentar sua vida triste. O doutor não era um mal profissional. Apenas trabalhava demais, e aquilo parecia estar-lhe afetando. Se o paciente tivesse chegado alguns meses antes, seria atendido com toda atenção e dedicação pelo doutor. Mas não atualmente. O doutor mal dormia, não conseguia se concentrar em nada, estava se tornando um profissional e pai de família distante.
- ... então é isso doutor, foi aí que as coisas começaram a sair do controle.
- Hmm? Perdão, poderia repetir essa última parte?
- Eu disse que foi aí que as coisas começaram a sair do controle. Quando as maçanetas começaram a girar para o outro lado. Não é possível que alguém tenha trocado todas as maçanetas que eu uso, é? Quer dizer, certamente é coisa da minha cabeça...
E o doutor entrou em transe novamente. Resolveu terminar aquilo o mais rápido possível. Puxou uma folha em branco, rabiscou uma receita.
- Tome um comprimido a cada 24 horas. Em um mês, retorne aqui para o consultório e veremos como o senhor está - disse o doutor, esperando que esse fosse um mês muito, muito longo.
- Mas...
- Boa noite! - disse o doutor, estendendo a mão. Sem outra saída, o paciente cumprimentou o doutor e levantou-se. O doutor estava distraído demais quando o paciente chegou até a porta para perceber que ele demorara tempo demais para abrí-la.
Penosamente, começou a arrumar o consultório. Colocou fichas e arquivos no lugar, guardou suas canetas, fechou os armários. Olhou para o relógio. Onze horas. Deveria ter chegado em casa há umas duas horas atrás. Levantou-se rapidamente, abriu a porta do consultório e saiu. Teve uma sensação estranha. Continuou, apagou as luzes da sala de espera, abriu a porta. Um frio percorreu sua espinha quando percebeu que havia girado a maçaneta para o lado errado. Fechou a porta, girou a chave e concluiu que, realmente, estava trabalhando demais. Era hora de tirar uns dias de folga.
Com um baque, o elevador chegou. O doutor entrou, apertou o térreo e se recostou contra a parede. Estranhou o elevador, parecia muito mais sujo e riscado que o normal. Saiu e verificou que havia descido pelo elevador de serviço, não pelo social. Tinha certeza de que o social ficava do lado direito, não o contrário. Mudou de idéia quanto aos dias de folga. Era hora de tirar um bom mês de férias.
Chegou em casa, pensou duas vezes antes de abrir a porta. Resolveu tocar a campainha. Sua esposa atendeu a porta, sonolenta. Perguntou se isso eram horas de chegar. O doutor se desculpou, tinha tido que lidar com um paciente chato. Acendeu a luz do corredor, abriu a porta do seu quarto. Lá de dentro, ouviu seu filho reclamando da claridade. Fechou a porta rapidamente, a porta do seu quarto estava do outro lado. Se perguntou desde quando, se lembrava claramente que a porta do seu quarto ficava do lado esquerdo...
Resolveu que talvez férias não fossem o bastante. Iria tomar o mesmo remédio que o paciente da maçaneta, um comprimido a cada 24 horas, e dentro de um mês tudo estaria de volta ao normal. Não precisava de férias, poderia continuar trabalhando...
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Depois de alguns dias as coisas voltaram ao normal. As maçanetas continuaram girando para o lado errado, os elevadores ainda estavam trocados, mas o doutor parou de estranhar. Esqueceu do paciente da maçaneta. Um mês depois, tomou o último comprimido. Havia se convencido de que eram comprimidos para a gripe, tinha até mesmo trocado a embalagem. Voltou a ser uma pessoa que se orgulhava de seu equilíbrio, psiquiatra de renome, que dedicava sua vida à profissão. Convivia com pessoas desreguladas todos os dias, e ficava cada vez mais são.
Sua vida melhorava. Trabalhava menos e ganhava mais. Começou a dedicar mais tempo à família. E as maçanetas continuaram virando para o outro lado, mas isso não parecia fora do comum. Viveu o melhor mês de que conseguia se lembrar.
Até que, um dia, o telefone tocou. O sujeito do outro lado da linha se identificou. Uma rápida pesquisada na agenda, o doutor lembrou-se, era aquele louco que dizia que as maçanetas estavam invertidas.
- Doutor, liguei para dizer que não vou conseguir ir à consulta de hoje.
- Ora, o que houve?
- A porta da minha casa não abre! Não consigo girar a maçaneta.
O doutor desligou. Levantou-se de supetão, olhou para a porta do consultório. Desesperado, gritou.
Estava preso.