sexta-feira, agosto 25, 2006

O outro lado

- Capitão, precisamos de apoio na muralha leste!

Os olhos escuros do capitão da guarda da cidade fortaleza de Sudre, cujo nome não importa, voltam-se para o alerta de um dos arqueiros. Ele, então, dirige sua atenção ao comandante da guarda, imponente, imóvel, sobre seu cavalo de batalha, no centro da praça, observando a batalha que se seguia. O comandante vira-se para ele lentamente, e faz um aceno positivo com a cabeça, voltando a observar o ataque impiedoso.



Ano de 433 na província de Raina. Uma ameaça conhecida apenas como O Archlich despertou de seu sono profundo, e causou caos por onde passou, em todo o continente. Quatro guerreiros e seu exército se colocaram contra o demônio, e uma feroz e sangrenta batalha teve seu fim na cidade de Sudre, com a derrota do Archlich. Porém, o poderoso exército estava em frangalhos, com dois dos heróis mortos e milhares de homens sucumbindo durante a batalha, cortesia dos incontáveis mortos-vivos trazidos do abismo pelo poderoso místico derrotado. E ele despertaria no futuro. Regalias de ser um Lich.

Para impedir a possivel tragédia, os dois heróis remanescentes e seu exército construiram uma torre, e ergueram uma poderosa barreira ao seu redor. Na torre jazia o corpo do Archlich. A barreira sagrada impedia que qualquer tipo de criatura criada com magia das trevas entrasse ou saísse da barreira, mas não impedia mortais de passar por ela sem problemas.

E assim os heróis ficaram famosos no continente, e durante alguns séculos a paz reinou sobre a terra.



Com os reforços na muralha leste o capitão da guarda observa, sem crer, na quantidade abismal de criaturas sobrenaturais que rastejavam e/ou caminhavam em direção à fortaleza. Ele derruba um dos zumbis que, escalando o muro vagarosamente, quase decepou a cabeça de um dos arqueiros, distraidos com as aberrações lá embaixo.

A fortaleza, desde tempos remotos, guarda o corpo sem vida do Archlich, na torre central, protegida por uma barreira sagrada. Seus soldados passam pelo mais rigoroso treinamento, e são conhecidos em todo o continente como a defesa que beira a perfeição. Sob sua guarda, a cidade jamais foreu saques de bárbaros das planícies, ou mesmo perdeu batahas com outras províncias.

O capitão, entretanto, sabe que isso pode mudar até o fim do dia.

Corre no continente um boato de um necromante ambicioso, que pretende recuperar o cadáver do Archlich para descobrir sobre o processo de vida após a morte, e assim adquirir o poder supremo. Dada a quantidade de cadáveres fedorentos vindo em direção às muralhas, o capitão deduz que o boato era um fato.

Ele nota que a muralha oeste começa a ser sobrepujada pelo mar de corpos mortos que, indiferentes às flechas e estocadas de armas, continuam rastejando e destruindo tudo e qualquer um que encontrem. Ele chama alguns dos soldados e corre para o outro lado o mais depressa possível, para conter a onda.

Durante doze horas, o cerco à fortaleza manteve-se estável; os mortos-vivos tentavam, em vão, trespassar as defesas com tochas e flechas em chamas, graças ao óleo estocado na cidade. O tempo passou, e uma chuva fina começou a causar os primeiros problemas com o combustível, parelelo ao cansaço causado nos pobres soldados que davam o sangue para impedir que alguma das aberrações entrasse na cidade. Agora, na décima terceira hora de cerco, restava ao capitão da guarda acreditar em seu comandante.

- Seguremos essas atrocidades mais um pouco - , disse ele - os Cinco Heróis de Dhaitau estão a caminho com a Pedra de Poder, e vão nos salvar.

A muralha oeste ganha algum reforço com a chegada do habilidoso capitão e seus homens. No figurado calor da batalha, uma vez que a fina chuva derrubou a temperatura drasticamente, e com o sol encoberto por uma espessa massa negra não ajudando, o capitão se pergunta como as coisas são como são.



O pífio vilarejo de Dhaitau, no extremo leste da província. Durante décadas de existência, seus pescadores viveram uma harmonia de dar inveja às cidades envolvidas em saques e/ou disputas territoriais. Seu pior incidente aconteceu quando três bandoleiros bêbados mataram alguns dos pescadores e roubaram alguns sacos de arroz e uns baldes de peixe defumado, revelando a notória capacidade de combate de seus aldeões. Após o incidente, encerrado com a execução dos três saqueadores na capital, todos chegaram a um consenso que aquele vilarejo não servia pra nada - nem para recrutar guerreiros, nem para ser roubado. Os três bandoleiros foram capturados enquanto mendigavam alguns dias depois, no subúrbio da grande cidade.

E então, após a ameaça do necromante surgir com mais solidez, cinco heróis brotaram, sem antecedente algum, desse patético vilarejo. Os Cinco Heróis de Dhaitau, como são conhecidos no continente, sairam pelo mundo realizando proezas inimagináveis, tentando solucionar o que o necromante queria, e chegaram à conclusão de que ele estivera atrás do Archlich. Então partiram para Sudre. O necromante, porém, pensou mais rápido,e atacou antes.



Se a poderosa guarda de Sudre, reconhecida por toda a parte como a melhor e mais preparada, estava prestes a sucumbir a um punhado (certo, um senhor punhadasso) de criaturas animadas magicamente, o que cinco pescadores de um vilarejo rural fariam?Essa pergunta intrigou o capitão desde o momento em que o comandante lhe pediu para manter a defensiva.

E então a muralha norte caiu.

Os gritos de horror chamaram a atenção do capitão da guarda. Toda a defesa fora coberta por um enxame de corpos putrefatos, ao mesmo tempo em que a barricada no portão principal cedeu, junto com o portão. O capitão olha para o comandante, no centro da cidade, agora exibindo um rosto que mesclava arrependimento, medo e ódio.

Sua defesa fracassou. Ele grita sua última ordem para suas tropas, em uma vã tentativa de elevar a inexistente moral dos soldados, e parte para os monstros que atravessam o portão, junto a alguns cavaleiros que o acompanhavam. Ele destrói boa parte dos carniçais, mas chega o momento em que o capitão da guarda vê seu poderoso comandante e suas tropas soterrados pelos horrores fétidos intermináveis.

As muralhas cedem por completo, e o capitão recua com um punhado de soldados que ainda resistem. O caos toma conta da cidade, com familias fugindo de suas casas para serem tragadas pelos mortos-vivos, ou correndo de um lado para outro sem rumo algum.

O capitão se pergunta o que pôde ter dado errado. A guarda fora treinada para ser superior ao exército que, originalmente, combateu e venceu o poderoso e onipotente Archlich, que controlava uma legião de criaturas muitas vezes mais poderosas. E, após tanto treinamento árduo, a guarda de Sudre já era superior. Como o exército original, sem a técnica da guarda, conseguiu derrotar um inimigo com o dobro, talvez o triplo, de potencial? O que deu errado?

E ele pára. A ficha caiu.

Com seu último fôlego ele berra para seus soldados ainda vivos e os moradores. Ao seu comando, todos se aglomeram ao redor da torre selada, olhando com horror para as criaturas que vêm em direção a ela. Mas o capitão continua gritando para permanecerem imóveis.

E ao tocar na barreira, o primeiro cadáver é vaporizado. Ele conseguiu.

Mas não por muito tempo.

Com um clarão, os mortos vivos são todos fulminados. O capitão, após a luz ofuscante cessar, olha para o portão principal. Cinco pessoas fitam a torre, com rostos aliviados. Parece que correram muito para chegar até lá. Um deles guarda uma pedra que erguera minutos antes. "A Pedra do Poder", pensa o capitão.

Os cinco heróis são recebidos com festa, ao mesmo tempo em que a espessa massa negra cobrindo o céu se desfazia, exibindo a noite estrelada.

Os heróis conversam com o líder de Sudre, e decidem seu próximo passo agora que o corpo do Archlich estava seguro. A noite de festas prossegue, e na manhã seguinte eles se despedem, seguindo para o norte.



O capitão olha a partida dos cinco heróis, e se volta para a cidade. Com as muralhas em ruinas, casas destruidas, corpos ainda sendo recolhidos, ele nota um homem de capa olhando para as pessoas trabalhando na reconstrução, agora deprimidas e indiferentes. Este se aproxima do capitão, e pergunta por que o comandante da mais poderosa e preparada guarda do continente não pensou em mover todos para a barreira e assistir a destruição dos mortos-vivos tranquilamente esperando a chegada dos heróis. Ele continua dizendo que, apesar de o próprio capitão ter salvo os sobreviventes movendo-os para a barreira, o reconhecimento fora todo para os cinco heróis, que dizimaram os cadáveres antes de alguem sequer notar que já estavam em segurança.

O capitão faz um sinal negativo e se afasta do estranho. Ele olha para o céu da manhã e se conforma com o anonimato.

Afinal, os heróis sempre levam a glória.

E, assim como seu comandante, ele não passava de um mero NPC. Sequer seu nome importava.


Os nomes Sudre, Raina, e Dhaitau foram gerados aleatoriamente pelo gerador de nomes aleatórios TenNaito®, todos os direitos reservados.

2 Comentários:

Às sexta-feira, agosto 25, 2006 11:25:00 AM , Blogger Luiz Madeira disse...

Po, quando eu finalmente decido postar pra dar um UP aqui, o GH me atropela XDD

Mas vamos lá:

Gostei do texto. "Um mero NPC" foi demais hahaha. Li tudo até rápido demais, gostei do jeito que você escreveu e os nomes By TenNaito cairam como luva! XD

 
Às sábado, janeiro 03, 2009 11:38:00 PM , Blogger tennaito disse...

Muito maneiro o texto. E é emocionante ver que meu programa auxiliou em alguma coisa... hehehehe.

 

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