sexta-feira, outubro 27, 2006

O lago das cinzas

- Olá
- Oi

Pego o meu jornal, finjo estar lendo sobre a nova medida provisória do governo, ou acusação de corrupção. Talvez esteja aberto no caderno de classificados. Na verdade isso não importa. Ele senta. Silêncio. Ele olha nos olhos dela e não desvia o olhar. Ela está olhando ao longe. Para longe onde? Não sei, se olhar para o longe, não olho para eles. A mulher respira fundo:

- Trouxe?
- Sim.

Ele retira uma caixa escarlate de seu bolso e entrega a ela. Bonita, a caixa. Ela abre, desvia finalmente o olhar para a caixa, fecha, coloca do seu lado esquerdo e volta a olhar para o longe. Eu viro uma página do jornal para disfarçar. Não estou espiando. Estou apenas... Talvez o caderno policial, não sei.

Começo a pensar que os dois são realmente estranhos. O homem relaxa, mas, ainda que de cabeça baixa, olha para a mulher. Ela parece estar pensando profundamente.

- Então?
- É isso.

Ela vira para ele. Seus olhos são penetrantes. Não consigo me decidir se são olhos bons ou ruins. Eu só sei que daria tudo por um olhar daqueles. Ela chega a abrir a boca, hesitante, mas acaba fechando-a. Sua cabeça, nervosamente, volta para baixo. O homem, coitado, fica sem reação. Olhos daqueles, ali, prontos para ele e ele hesita? Por quê?

- A caixa... Isso que eu vi...
- Sim.
- Por quê?
- É o mínimo que podemos fazer.

Eu sinto um tom irônico no ar. Não, não, não estão sendo irônicos. Pelo contrário. Mas, de todas as conversas, esse tipo é o que mais gosto. Aprecio esse tom.

Uma mulher quase estraga minha atenção. Passa rápido, chorando, com pétalas de flores ainda no seu ombro, caindo ao passar dela. Finjo estar lendo o jornal, mas nem precisaria, ela não está prestando atenção em detalhes como eu. Percebo que estou no caderno de variedades, palavras cruzadas. Nunca acerto nada. Mas bem, não estou fazendo-as mesmo...

- Ela...
- É.
- Mas Julio vai...
- Eu sei, questão de tempo.
- Ainda não acredito.
- Foi um impulso. Tudo foi um impulso.

Percebo que estou com o jornal quase que deitado no colo, olhando fixamente para o banco deles. Percebo isso, pois um senhor de meia idade senta no banco. Eles somem... Isso sempre acontece...

Levanto dali e vou andar um pouco. Aquela paisagem... Poucos gostam dela. Dos poucos que gostam, a maioria usa preto e acha que tudo aquilo é muito divertido. Com bebidas e drogas então... Vejo uma garrafa de Vodka no chão e jogo-a no lixo, onde deveria estar. Se os moradores pudessem reclamar... Mas na verdade não sei. O atual não me aparece, só o passado. Gostaria de um dia bater um papo sobre esse povo com eles. Tirando essa parte, eu gosto do lugar. Às vezes me surpreendo com o que presencio. Todo mundo gostaria de ver as pessoas assim de perto, saber seus medos, seus sentimentos e como reagem naturalmente. Mas só eu, creio - talvez tenha mais alguém, não sei, não vou ficar perguntando por aí - vejo essas coisas. E só vejo depois que não posso interferir interagir. É uma lei.

Chego à ponte do lago. Eu gosto desse lugar. Os outros não têm uma ponte no lago, não tem tantas flores bonitas. É triste. E a resposta está naquele meu jornal. Queria que todos tivessem um lugar assim. Gosto especialmente desse por causa do lago. Lago das cinzas.

- Olá.

É um homem. Parece feliz e triste ao mesmo tempo. No começo eu não entendo.

- Oi, lindo dia, não?
- Sim.

Ele fica mais um tempo ali parado, olhando para o lago. E, de repente, eu entendo o ar irônico da conversa anterior. Ele pega duas caixas escarlates numa bolsa, as abre e joga todo o conteúdo no lago. O vento leva aquele “pó” pelo lago. É uma cena bonita. O homem fica olhando por um bom tempo a cena e depois de respirar fundo, como se tivesse esquecido de fazê-lo durante todo aquele tempo, guarda as caixas na sacola e vira para se despedir.

- Passe bem o dia...
- Fernando.
- Fernando... Até algum dia. Quem sabe não nos trombamos por aqui mesmo?
- Quem sabe!

Ele vai embora, eu reclino na muretinha da ponta, olho para o pó indo embora...

- Não duvido. Não duvido... Julio.

3 Comentários:

Às quinta-feira, novembro 02, 2006 11:37:00 AM , Anonymous Anônimo disse...

Walbher: Boas idéias em azul.

 
Às domingo, novembro 26, 2006 4:27:00 PM , Anonymous Anônimo disse...

"Sexta-feira, Outubro 27, 2006"

Então Quem Morreu é em homenagem ao blog?



(piada horrível XD)

 
Às quarta-feira, março 07, 2007 6:24:00 PM , Anonymous Anônimo disse...

Reminds me of Sandman. :)
LToffolo

 

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